sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

03 - A PERDIÇÃO EM UM MUNDO ESTRANHO


“O dia transcorreu normalmente, preparamos a bagagem que iríamos precisar e passamos o resto do dia cantado, conversando e comendo. A noite chegou e a fogueira foi acesa, mais músicas e comida (como eles comiam), gostei muito daquela bebida que me trouxeram, esquentava e alegrava o coração, disseram ser feita de frutas fermentadas e destiladas. Aproveitei e peguei a receita pois ensinaria meu povo quando retornasse à aldeia. Não sabia quando isso iria acontecer mas guardei em minha bolsa. O dia amanheceu e tudo estava pronto para nossa partida, meu alaúde ganhou uma capa de couro para protegê-lo, levávamos carne seca, néctar, e pães para a viagem. Não houveram despedidas pois saímos bem cedo, apenas algumas mulheres estavam despertas e nos observavam em silêncio enquanto caminhávamos para a entrada da gruta e saída do vale, andamos muito e paramos para comer, Hottonia me observava em silêncio e me avaliava, disse que ao cair da noite conversaríamos a respeito de tudo o que me afligia, a minha estrada estaria determinada a muito tempo e chegara agora o meu momento. Caminhamos muito em direção ao poente até o anoitecer, paramos em uma clareira, armamos acampamento e ele começou a falar:
- Meu filho, todos nós temos vários estados mentais e emocionais que nos dominam a cada dia e instante, por exemplo: o seu povo era dominado pelo medo, o espirito do medo do desconhecido por exemplo, a curva do rio que assustava a todos; os barulhos noturnos e pegadas desconhecidas, além do desconhecido final do rio, o medo ao qual não podemos dar um nome. Você venceu estes medos e se aventurou, decidiu ser dono de seu próprio destino e arriscar, tomou as rédeas de sua vida e partiu. Mas para ser dono de seu próprio destino existe um caminho de aprendizado que deverá percorrer, irá fraquejar em alguns momentos e cairá querendo desistir, em outros irá se superar ganhando mais autoconfiança em sua estrada, até poder voltar e libertar seu povo, existem muitas armadilhas, algumas irão te seduzir, responda uma pergunta: Gostou do néctar que elas te deram para beber? Tome cuidado com ele, pode ser a tua ruína, te estacionar se usado da maneira incorreta, e das ervas de “poder” que seus anciãos lhes davam? Aqui neste mundo existem muitas, só que não estará na segurança de sua aldeia, aqui estará entre estranhos, estranhos estes que irão querer se aproveitar de você. Cuidado com quem deposita sua confiança, pode não ser merecedora e te magoar tornando seu caminho mais difícil.
“Não vou permanecer muito tempo com você, devo partir em busca do poder perdido para que possa encontrar o portal, lá quase não existe tempo, eu estou velho, devo passar o que aprendi aqui para os novos que chegarão, em breve irá receber visitas daquele que ficou no Castelo de cristal, após tantos séculos agora ele deve estar com a aparência que tenho hoje, como disse antes o tempo lá é diferente do daqui.
“Vamos prosseguir por uma parte do caminho juntos, meu dever é te ensinar o que puder sobre este mundo, os costumes, os povos, as culturas, e o principal, a língua universal, cada povo aqui fala uma língua própria, mas existe uma língua universal que todos os povos falam, você fala a de seu povo antigo, seus anciãos não ensinaram a vocês a língua do mundo pois acreditaram que não iriam precisar dela, depois você fará suas escolhas sozinho, existem muitos perigos, alguns por seres que sabem que o prometido está próximo, não me pergunte como, mas aqui existe muita magia e eles sabem através dela, com certeza vão querer te impedir pois querem dominar o mundo e os povos livres através de tradições impostas pelo medo, vícios e acomodações, além das promessas que nunca são cumpridas. Existirão magos e feiticeiras, são poderosos e tentarão se interpor em seu caminho, existem outros guerreiros de valor que não sabem o valor que tem, você é quem deverá lembra-los disso, não se esqueça de que todos nós temos as respostas, basta olhar para dentro com o coração limpo, apenas não nos lembramos delas, mas aprenderá mais a esse respeito com pessoas que vai encontrar, elas lhe ensinarão melhor do que eu, não posso falar muito mais sobre isso. Você os encontrará pelo caminho que vai seguir e eles o ajudarão a reencontrar a direção caso a perca. Alguns parecerão não merecer sua confiança mas na hora do aperto demonstrarão o contrário, posso te adiantar que será uma surpresa atrás da outra, agora devemos dormir. Boa noite.
“Dizendo isto se deitou e dormiu. Sei lá, esse velho me incomodava, dizia um monte de coisas, virava para o lado e dormia. Parece que eu estava adivinhando acordei no dia seguinte e ele havia sumido, havia um sinal indicando a direção que eu deveria seguir. Comi e comecei a caminhar falando comigo mesmo:
“Esse velho está louco se pensa que eu vou entrar em uma guerra que não é minha, essa disputa não tem nada a ver comigo. Prometido? Escolhido? Não sei nada a esse respeito, apenas sei que quero libertar meu povo, mesmo assim eu estava deslumbrado com tudo o que via.

“Encontrei muitas aldeias, o que aconteceu não importa muito agora, continuei minha caminhada sozinho, aldeia por aldeia, em cada uma me perdendo mais e mais. Acabei me tornando um gozador na vida, gostava de vinho, orgias, quase sempre conseguia o que queria, pois tinha uma grande capacidade de manipulação que fui adquirindo com o passar do tempo, foi a maneira que encontrei para sobreviver, se necessário mentia e enganava. Nunca tinha uma moeda guardada pois gastava tudo o que arrecadava com festas e bebidas. Minha casa, meu mundo do qual eu saíra e me aventurara a muito tempo, tempo do qual não tenho mais muitas lembranças ficou para trás, não tinha mais família, não sabia mais como estavam, nem onde, havia crescido em um núcleo desequilibrado que me levou a desacreditar das pessoas. Os que eu considerava iguais aos do meu mundo aliado à curiosidade de saber como era aqui fora e conhecer este mundo me levaram a me aventurar e viajar por ele em busca sempre de emoções novas e aventuras desafiantes.
“Comecei a me entorpecer com vinho e plantas de poder que me apresentavam uma visão diferente, vivia a ansiedade dos jogos, sempre acreditando que ganharia na próxima rodada e assim ia vivendo, como aprendi em casa, com meus pais e irmãos a não perder nunca, a não confiar em ninguém, pois tentariam me passar a perna mas tinha um porém, eu também não sabia preservar o que ganhava. Sofria muito por isso pois no fundo, no fundo queria algo melhor. Eu não conseguia ser como fui ensinado ou no que fui transformado pela estrada, talvez se tivesse sido melhor orientado não aconteceria dessa forma, não estava em meu intimo. Eu era um sonhador, tentava acreditar no outro, ansiava por encontrar alguém que me compreendesse e desse valor, era complicado pois, como poderia encontrar alguém assim vivendo como eu vivia? Queria parar em algum lugar, criar raízes, constituir uma família, me estabelecer. Até chegava a ficar um pouco em algum lugar mas acontecia tanto que em determinado momento ninguém mais acreditava no que eu dizia; minha imaginação era muito fértil, eu conseguia criar aventuras que nunca tinham acontecido, mas que era o que gostaria de ter vivido, não que mentisse, mas acabava fantasiando demais. Era um trovador, um contador de histórias e elas eram contadas de uma maneira tão real que até eu passava a acreditar nelas como se tivessem acontecido como eu dizia.
“Gostaria de ser como as pessoas comuns, mas não conseguia ter um lar, uma família, um trabalho, amigos, mas algo mais forte que eu gritava quando chegava em alguma aldeia, a Primeira coisa que procurava era uma taverna para beber um pouco de vinho. Caso não tivesse uma moeda bastava prestar atenção e perceber o momento, um violão para tocar, uma aventura para contar ou a pessoa certa para me aproximar fazendo amizade e sempre funcionava. Nestas horas era até feliz, enquanto não passasse da conta ou encontrasse a pessoa errada... Mas não adiantava, existia uma atração, era como se existisse um imã para me levar ao tormento do mal que estava em mim, meu lado obscuro vinha a tona e eu perdia o controle, era mais forte e me obrigava a cometer atos absurdos, insanos, coisas que não estavam em meu coração.
“Quando estava nas trilhas de alguma aldeia eu jurava que as coisas iriam ocorrer de uma maneira diferente. Por incrível que possa parecer eu estava sendo sincero, fazia planos para os próximos passos e nestes momentos me sentia um pássaro solitário, cantava pois era um trovador da inexistência, alegrava o coração das pessoas com minhas canções. Através delas reverenciava a natureza e a vida acima de tudo, estando em comunhão com ela me sentia em casa, tinha muitos amigos entre os seres que na floresta habitavam. Nutria meu interior com a força das árvores mais antigas em toda sua plenitude de onipotência, recebia a dádiva da sabedoria das flores, quando me banhava nas cachoeiras recebia a pureza e maleabilidade das águas que traziam a energia de todos os seres que se beneficiaram delas banhando meu corpo com a mesma energia e somando à minha para mais à frente fortalecer os que estivessem em seu caminho. Nestas ocasiões os espíritos de cada ser da natureza sorriam para mim e os elementais gritavam de alegria e também de tristeza pois sabiam que não estava seguindo meu caminho como deveria, mas as lições deveriam ser aprendidas e somente vivendo é que se aprende realmente. Assim prosseguia e as canções brotavam:

“Mochila nas costas, viola na mão,
caminho sozinho não tenho um destino,
não sei onde vou parar,
mas em algum lugar tenho que chegar;
Quando lá eu estiver, quero ser um vagalume,
na beira de um rio a brilhar,
quero ser as nuvens brancas,
no céu azul a passar, um pássaro solitário procurando se encontrar,
pode ser que um dia ele se resolva,
com suas asas coloridas, o arco-íris a enganar,
Pousar em uma grande ilha cercada, pelo mar,
lembrando da sua viola
se pôs logo a cantar para fugir de sua solidão
Se você o encontrar, ouça o que ele vai lhe cantar,
pode não ser muita coisa,
mas garanto que, vai te fazer pensar”

“Prosseguia sempre em frente pois realmente não podia voltar atrás de tanto que aprontava e neste momento, agora, estava nesta cidade, disseram chamar-se Zanaria e era a capital do reino,Aurehan. Como não existia um compromisso com meu destino porque não existia um preestabelecido, me tornei um barco sem leme, a correnteza me levava e qualquer paragem era um porto. Eu era muito vulnerável a influências externas e me entregava ao que surgisse em meu caminho. Nesses instantes sempre encontrava a pessoa errada, mas é assim, os semelhantes se identificam e se atraem, é tudo uma questão de sintonia e a minha não era muito produtiva. Foi assim que a conheci.
“Ela era duas pessoas em uma só, durante o dia chamava-se Eupatoria, seus cabelos eram dourados como o sol da manhã, encacheados e cobertos de flores, se vestia de branco e azul, procurava sempre ajudar aos que a procuravam, sua paz, alegria e bom humor contaminavam quem se aproximasse de seu jardim pois ali era sua morada onde cultivava ervas e flores usando-as para ajudar os que a procuravam. Observava sempre o lado bom das coisas e situações com otimismo. Era procurada por todos pois era também uma curadora, mas apenas durante dias de sol. Ela era estranha para alguns, quem se aproximava dela sentia uma necessidade de ser verdadeiro, muitos choravam pois não gostavam de se ver como eram, mesmo assim iam embora contentes por terem se visto. Mas ela era uma faca de dois gumes de um lado ajudava e orientava e de outro cortava fundo, tinha duas personalidades;
“À noite se transformava em uma mulher perigosa, chamava-se Agrimonia; todos tinham medo dela, a mudança era progressiva, durante a madrugada ficava pior. Tinha domínio de artes místicas que usava para muitos fins, um deles entorpecer os aldeões que a visitavam, com uma diferença: De dia ela curava e à noite nublava os pensamentos de quem a procurava com suas ervas de poder mantendo-os escravizados, trazendo ouro, jóias e presentes. Eles compravam o que queriam, desde algo para adormecer um guerreiro e o roubar, uma poção para a paixão, até o veneno necessário a seus fins para se livrar de quem incomodava, era ela quem nutria os viajantes e aldeões das drogas necessárias para seu sonhos e suas fraquezas. Eu a conhecera através de um amigo ( mui amigo ) que gostava de curtir a vida, mas ela sempre queria mais e eu não sabia qual interesse que ela tinha em mim, sabia alguma coisa que eu não tinha conhecimento, o poder que exercia era tão grande, parecia que eu tinha esquecido do velho e de tudo o que ele havia dito. Todos os avisos de Hottonia, todos os cuidados, todos os lembretes foram esquecidos. As coisas novas que eu experimentava se tornaram tão importantes que nada mais interessava, apenas as “viagens” e nada mais. Pensava sempre na próxima dose.
“Acabei prisioneiro daquela aldeia sem perceber, muitas vezes nos calabouços do rei por causa de minhas insanidades, mas sempre era solto como por milagre. Às vezes visitava Eupatoria durante o dia, que diferença, me sentia muito bem, não entendia muitas das perguntas que me fazia ou afirmações, minha mente estava turva com o que usava durante a noite com Agrimonia, perguntava se a conhecia, as respostas eram evasivas, percebia que não queria falar a respeito mas me dizia para ter cuidado. Algo a incomodava e a mim muito mais pois quando estava com ela percebia algo de errado comigo, mas não sabia o que era. Não dei muita importância a isso.
“Um dia estava na taverna conversando com Calluna Vulgaris, este era um bom amigo, adorava conversar, seu problema era a dificuldade de escutar mas aprendi muito, foi quando o vi entrar. Era enorme, usava um capacete com chifres curtos duas espadas, uma curta e outra grande, um pequeno machado na cinturas, era um guerreiro com certeza, havia vindo para o grande torneio do rei, este torneio estava trazendo muita gente de fora, ele parecia ser um homem do norte, dominador, um líder que sabia o que queria e para onde ia, um pouco prepotente e arrogante. Encostei nele puxando papo e fazendo amizade, chamava-se Vitis Vinifera, fui bebendo às custas dele, depois de muitas canecas de vinho ele percebeu que eu concordava com tudo o que ele dizia para agrada-lo e a intenção era de me aproveitar, até tentou se afastar, como eu não dava sossego partiu para cima de mim e me levantou acima da cabeça.
“Fui jogado para fora, graças aos céus meu alaúde foi guardado por Calluna, ainda estava inteiro, mas no vôo acabei caindo sobre uma carruagem que estava passando. Pensei comigo”:
“Este nobre não vai me castigar pois não foi culpa minha, fui jogado e antes de completar meu pensamento os guardas me pegaram e começaram a me acorrentar. Neste instante o nobre que estava na carruagem desceu e se aproximou levantando a mão para os guardas, eles pararam e ele disse se chamar Fagus e ser o rei, começou a falar:
- Você deve ser um dos escolhidos, nós o aguardávamos a muito, muito tempo, a profecia dizia que você surgiria de uma forma inesperada, atrapalhada até, bem só pode ser você pois nunca alguém atropelou minha carruagem antes.
“Eu não sabia bem do que ele estava falando, tinha uma vaga lembrança de um velho me falando a esse respeito mas tudo estava enevoado em minha cabeça, tinha bebido muito, mas concordei, ele era o rei, eu um plebeu que nem daquela terra era, então por que não concordar? Era o meu pescoço que estava em jogo. Fui levado para o palácio, lá me alimentaram, me vestiram e armaram, não disse nada mas nunca havia usado uma espada antes, quanto mais lutar e agredir alguém, sempre consegui o que queria na conversa, os conselheiros vieram me orientar a respeito da profecia e do torneio proposto pelo rei para encontrar o prometido, existia um elemento novo que eu não conhecia: “Um tesouro”. Existiam muitos escolhidos, e cada um deles teria sua função no reino, apenas teriam que provar seu valor, mas prometido existia apenas um. O tesouro era desconhecido, apenas o rei e alguns magos sabiam qual era, mas não disseram nada a respeito naquele momento, saberia depois. Levaram-me a meus aposentos a noite e me deixaram a vontade para dormir, o que não consegui, muita coisa havia acontecido e eu precisava assimilar.
“Percebi uma sombra na janela, já fazia muito tempo que me seguia e na hora de pegá-la, desaparecia, era muito rápida, parecia um animal. Mas cedo ou tarde iria se descuidar. Agora eu queria dormir, quem sabe durante a noite teria um sonho que me dissesse o que fazer ou como tirar proveito desta situação”.
“Ouvi um leve movimento no meu quarto e abri os olhos sem me mover, aprendi a ficar esperto neste mundo, sorri, pois o vulto que me observava da cadeira em minha frente não parecia muito grande, creio que conseguiria derrubá-lo, me movi rápido, mas ele foi mais rápido ainda, parecia uma pantera e me segurou. Era uma mulher da aldeia de Zeedris, estava me seguindo desde que parti com o mago, me fez um sinal pedindo silencio e marcou de se encontrar comigo na taverna de Calluna quando o sol estivesse alto. Em seguida saltou pela janela e desapareceu na névoa da noite, não consegui dormir tentando entender o que poderia querer comigo”.

Agrimonia Eupatoria - Agrimony - agrimônia
Calluna Vulgaris - Heather - urze, planta do brejo
Vitis Vinifera - Vine - videira