quarta-feira, 15 de junho de 2011


07 - DE VOLTA AO CAMINHO

            “O mundo que eu deixara ao ir para meu retiro não estava mais como o deixei, a aldeia pela qual passara se aproximava e nós podíamos divisar uma fina linha de fumaça por detrás das árvores, me preocupei com Azuen e as crianças, com sua segurança, pelo que Vitis me dissera exércitos, salteadores e mercenários circulavam pelo reino destruindo e saqueando o que encontravam, as mulheres eram usadas e mortas, os homens eram feitos escravos ou recrutados para combater, caso não concordassem eram mortos, as crianças “adotadas” para servirem e serem treinadas.
             “Imaginei também os seres que deveriam estar a solta, pois com o mal, apenas o mal acompanha, e se conheci seres estranhos porém bondosos, deveriam existir outros que ouvira apenas falar outrora na beira das fogueiras, só de pensar nos dragões sentia calafrios. Procurei não me preocupar com isso naquele momento. A cada dia bastam suas preocupações, e as do momento eram com a aldeia e Azuen. Ao ultrapassarmos as últimas árvores vimos o que não queríamos ver, a aldeia estava fumegante, as casas de taipa destruídas, a algumas pessoas que conseguiram se refugiar na floresta procuravam sobreviventes entre os corpos chacinados, o choro convulsivo predominava na maioria, crianças gritavam ao lado dos corpos de seus pais, o sangue dos mortos lavava o chão batido pelos cascos dos cavalos. Nada podíamos fazer pois tínhamos uma missão a cumprir e não poderíamos nos deter agora, do contrário isso não iria parar até que todo o reino estivesse sob o jugo das trevas que agora se espalhavam em todas as direções. O que poderíamos fazer seria orientá-los e organizá-los para que seguissem até um lugar seguro, e qual mais seguro do que o que viemos agora? Não podia ser visto de fora e ficariam bem até tudo terminar.
*inserir gravura da descrição a seguir na página ao lado
            - Vitis, vamos ajudá-los, podem ficar na clareira pois lá estarão protegidos, o que te parece?
            - Concordo, lá estarão bem, há água e caça e frutos em abundância, vamos guiá-los até lá?
Não, você vai - disse-lhe eu - organize-os e os leve com o que possa ser útil, panelas, mantas, armas, não que elas sejam necessárias lá, mas serão em um futuro não muito distante, eu sinto isso. Faça um levantamento do que sobrou aqui e leve-os de olhos vendados para não saberem sua real localização, não sabemos, se um dia forem submetidos a tortura algum deles pode tentar mostrar aos mercenários, ainda que a passagem não se abra, a localização daquele lugar de paz e sabedoria e eles ficarão na entrada para assaltarem os que entrarem ou saírem.
            “Ao que Vitis indagou:
            - Acredita que depois do que passaram aqui vão confiar em nós dois e se deixar levar com os olhos vendados? Não creio.
            - Bom meu amigo, sinto muito por eles caso seja assim pois então ficarão à mercê de sua própria sorte, não podemos fazer nada mais, e depois, se quiséssemos e fosse inimigos mataríamos a todos, veja como estão desnorteados, não sabem nem para que lado andar no que foi a aldeia um dia, estão todos em estado de choque. Vamos conversar com eles, depois eu vou procurar pela floresta, talvez encontre alguns cavalos perdidos que podemos utilizar, depois vou ao outro lado, quero ver se Azuen está bem.
            “Começamos a tentar reunir a população, deveríamos despertar um líder entre eles e convencê-los a nos ouvir. Restaram uns vinte, talvez um pouco mais sem contar as crianças. Nos reunimos todos no centro da aldeia e Vitis começou a falar:
            - Atenção por favor, quero que nos ouçam agora. vocês passaram por maus momentos, podemos ver isso, mas não podem continuar aqui, devem partir e levar consigo os velhos, as crianças e o que possam usar. As trevas estão em quase toda parte já, passaram por aqui na forma de soldados, outros virão e talvez não dê tempo de correrem, proponho que vocês nos sigam até um local seguro, próximo daqui, lá não poderão ser encontrados e terão tempo de curarem suas feridas, chorarem seus mortos e se prepararem para o futuro. Sou Vitis e este é Centaurium, ele é o escolhido das escrituras e está em busca do tesouro que salvará o reino e expulsará o mal. Terão que ir com os olhos vendados, não podemos correr o risco de levarem até lá pessoas não merecedoras pois é um espaço sagrado, não deverão sair também até tudo terminar para que não corram perigo
            - Como podemos confiar se não os conhecemos?/ Como saber que não vão nos entregar aos monstros que vieram antes? Que vocês não estão indo se juntar a eles como mercenários? - responderam os sobreviventes do caos.
            - Tolos -respondi eu - acaso nos parecemos um pouco com mercenários? Acreditam que não os teríamos passado a fio de espada se não o quiséssemos? Porque levaríamos um peso que apenas nos atrasaria a caminhada em troca de algumas moedas enquanto poderíamos ter mais nos juntando a eles? Somos guerreiros sim, mas guerreiros do bem - gritei ao retiramos nossas espadas ao mesmo tempo e as levantamos acima de nossas cabeças, elas resplandeceram ao sol com um brilho que mesmo eu nunca havia visto e a luz nos envolveu no mesmo instante. O povo se afastou assustado, nunca haviam visto coisa igual, apenas ouvido em lendas de um passado distante, quando guerreiros sábios e benevolentes guerreavam ao lado dos fracos e expulsando os opressores para terras negras e distantes, eram abençoados pelos anciãos e a luz era a sua marca.
            “Um velho se aproximou de nós e se voltou para todos dizendo:
            - Atenção, devemos confiar nestes homens, eu os reconheço pois trazem a marca de que as escrituras sagradas falavam, a luz, vamos segui-los como quiserem.
            “Todos ouviram, discutiram e acabaram cedendo, me despedi e entrei na floresta, deveriam existir cavalos perdidos por ali, não poderiam ter levado a todos, caminhei um pouco e ouvi barulho de água, caminhei em direção a ele e gostei do que vi, vários cavalos bebiam e pastavam ao redor. Me aproximei devagar para não assustá-los e fui beber um pouco, agi como se não estivessem ali, de repente um garanhão soltou um relincho forte e todos galoparam em sua direção. Ele era magnífico, branco, forte e tinha um porte nobre, gostei dele e o queria, mas sabia também que não poderia ser assim, deveria ser aceito por ele antes. Continuei na beira do riacho me refrescando e descansando enquanto aguardava, teria que vir em minha direção, o que fez em seguida, devagar e com desconfiança. Me deitei na relva e fechei os olhos. Seus passos se aproximaram, poderia me pisotear se quisesse, continuei firme e confiante sem demonstrar medo, ele estava ao meu lado e começou a me cheirar, nisso abri os olhos e olhei nos dele, ele se levantou nas patas traseiras e soltou um relincho longo, pensei que iria descer sobre mim naquele momento mas não, ele desceu suas poderosas patas ao meu lado e me empurrou com a cabeça. Me aceitara.
            “Levantei-me e passei as mãos por seu pescoço, ele demonstrou gostar do afago. Conversei sabendo que me compreenderia, disse-lhe que precisava de sua ajuda e que sabia de um lugar onde poderiam ficar seguros os que ficassem sem seu guia. Que um tesouro deveria ser encontrado e eu teria que me mover rápido como o vento, disse o quanto a luz precisava dele, falei de meus medos, de não conseguir estar a altura da missão, de meu aprendizado com os guias e de minhas lições, que teria que caminhar mais rápido em direção a elas para encontrar o tesouro quando estivesse pronto.
            “Depois disso esperei, ele balançou a cabeça e se dirigiu para o bando, pareciam conversar, em seguida vieram em minha direção, que bom, concordaram. Montei em suas costas e galopamos em direção à casa de Azuen, percebi que alguns dos cavalos estavam com arreios, deveriam ser os da aldeia que se juntaram aos selvagens. Ao chegarmos me apavorei, nada restava de sua choupana, procurei por seus corpos os quais não encontrei, isso queria dizer que conseguiram fugir ou foram feitos prisioneiros, bom, ao menos estavam vivos e poderia encontrá-los. Procurei rastros ao redor, nada, não existiam pistas, foram capturados, não a matariam com certeza pois sua dança era inigualável e as crianças estariam bem pois poderiam mantê-la sob controle usando-as.
            “Deixamos o local e partimos para a aldeia a galope, não havia mais ninguém por lá, bom, devem ter partido pensei eu, mas não, haviam se escondido pensando que os soldados haviam voltado. Estavam prontos, todos gritavam e aplaudiam pois o cavalo que montava era o garanhão chamado por eles de “Demônio Branco”, invadia as cocheiras durante a noite levando suas éguas embora, acabava com as plantações com seu bando e todos queriam pegá-lo finalmente alguém o conseguira, era hora de faze-lo pagar.
            - Parem - gritei eu - Será que não percebem em que situação estão? Ao contrário agradeçam pois poderão ir mais rápido até o retiro antes que outros venham. Vitis está tudo pronto?
            - Sim irmão, vamos todos agora.”
            - Não, vão vocês - respondi - vou seguir os rastros enquanto ainda estão frescos, tenho que encontrar Azuen antes que se cansem de sua dança, o que acho difícil, mesmo assim quero resgatá-la e às crianças. Leve-os, deixarei pistas indicando qual caminho segui, adeus.
            “Disparei com meu novo amigo em sentido contrário, voltei à choupana pois percebi que os rastros que saiam de lá não era do mesmo grupo que assolou a aldeia. Era um grupo pequeno e faziam poucos dias que haviam partido. Eles seguiam em direção ao leste e não haveria problemas em segui-los, os rastros que deixavam eram pesados e fáceis de seguir. Comecei a perseguição e segui na direção em que foram, não pretendia parar, teria que me alimentar com frutos e vegetais pois não poderia acender fogo ou correria o risco de ser localizado, parava apenas para confirmar a direção e prosseguia, o estrago que eles deixavam na mata era impossível de passar despercebido. Dois dias depois estava esgotado, meu amigo demonstrava que poderia prosseguir mais um pouco. Achei melhor pararmos, não adiantava nada chegarmos esgotados e mortos de cansaço para lutar. Pedi-lhe que encontrasse água ao que prontamente atendeu, subiu uma colina e localizou uma nascente, matamos a sede e ele foi pastar, a noite estava alta, poderíamos descansar algumas horas até o amanhecer, antes porem, subi até o alto da colina para ver se existia luz em algum lugar. Bravo, a um dia mais ou menos de passo existia a luz de uma fogueira, só poderiam ser eles. Me animei, se seguisse a trote para não forçar e com alguns galopes acreditava que em meio dia os alcançaria. Deitei-me na grama macia e adormeci.
            “Acordei com algo me cutucando, era ele, teria que lhe dar um nome mas qual? Ele era forte, nobre, altivo, rápido e me compreendia, seu pelo resplandecia ao sol, parecia refletir o azul do céu. Ei, porque não Magia?
            - Que tal amigo? Magia. - Ele relinchou e levantou-se nas patas traseiras, pareceu ter gostado. - Bom Magia, vamos comer alguma coisa, pegar água e partir, temos uma longa caminhada pela frente.

            “Vitis conduzia todos os sobreviventes até o espaço sagrado com pouca dificuldade, os cavalos, mesmo os selvagens colaboraram sendo dóceis. Para ele escolheu uma égua negra de crina avermelhada, tinha quase o porte do garanhão branco de Centaurium, foi ela quem assumiu o lugar de comando da manada e pareceu gostar de Vitis. Atravessaram a passagem e Vitis os conduziu até a lagoa, pediu-lhes que aguardassem ali até que voltasse, pois ia pedir autorização para que ali permanecessem , também pediu que não tocassem em nenhuma planta viva. Dirigiu-se então até a clareira de Bromus e se pôs a conversar com ele:
- Como está meu amigo? Vim incomodar você um pouco, posso?
- Meu caro Vitis, a que devo seu retorno? Não aconteceu nada a Centaurium espero.
- Não, ele está bem, galopa agora para libertar uma donzela capturada pelos soldados das trevas, devo ir a seu encontro em breve. Mas estou aqui para pedir-lhe que permita permanecerem aqui alguns dos sobreviventes da aldeia próxima pois estarão em segurança, fique tranqüilo pois eu os trouxe de olhos vendados, não conhecem o caminho nem para entrar e nem para sair.
- Vitis, Vitis. É claro que podem ficar, desde que não derrubem nenhuma árvore ou machuquem as plantas menores também, não deverão construir aldeia nenhuma pois sua permanência é provisória e tudo deverá ficar como está. Claro que podem mudar algumas coisas de lugar como pedras e troncos mortos. Muito cuidado com o fogo, não queremos este lugar de paz em chamas não é? E depois, eu não gostaria de ser queimado vivo. Sabe? Gostei disso, vocês, humanos são tão peculiares, eu os acho muito engraçados, ah, têm crianças também não tem? Me divirto muito com suas brincadeiras e a muito tempo não vejo uma, lembro em outros tempos de paz, elas correndo ao meu redor, balançando-se nos galhos das árvores. Sim, será muito bom, façam o acampamento aqui. Quero ouvir as histórias que contam a noite ao redor da fogueira. Mas tenho que lhe dizer algo que talvez o contrarie, eu sinto muito, mas não poderá partir agora, olhe ao seu redor e procure seu caminho, veja se o encontra e depois vá até a lagoa refletir um pouco, os anciãos têm uma mensagem do Castelo de Cristal para você, agora vá, primeiro converse com os aldeões, diga-lhes o que te passei, fique tranqüilo, não vou assustá-los, os únicos que podem ver ou ouvir certos guias são os escolhidos e as crianças, ou seja, os purificados e mesmo assim, as crianças apenas sentem, e os adultos não crêem nelas.
“Vitis rapidamente foi até a lagoa e chamou a todos, repetiu o que lhe foi dito por Bromus e os conduziu até a clareira, organizou a todos, aos velhos, mulheres e crianças coube juntar lenha, água e arrumar o que trouxeram da aldeia. Os mais fortes iriam caçar, mostrou como preparar armadilhas para caça e pesca, os deixou e seguiu para a lagoa, estava taciturno pois, desde que falara com Bromus olhara em todas as direções e seu caminho se apagara. Pelo que sabia não poderia sair de lá. Chegando ele se sentou, e triste aguardou, queria ir atrás de seu amigo e não ficar ali, imaginava as aventuras do companheiro e os perigos também. Aos poucos foi se aproximando dele o globo de luz onde se encontrava Hottonia Pallustris. Vitis não se moveu nem se surpreendeu, estava acostumado com as coisas daquele mundo, já vira e ouvira muita coisa.
- Meu filho, como está? - perguntou o ancião - Percebo que está insatisfeito; não, não diga nada, sei tudo o que se passa com todos os meus filhos. Não deve ficar assim, cada um deve cumprir o destino que lhe cabe e o seu assim como o de Centaurium é glorioso, claro, muitas dificuldades que lhes trarão amadurecimento estão no caminho dos dois. Agora é o momento de ficar aqui, para que a profecia se cumpra seu companheiro deve permanecer sozinho agora, e sua parte é ensinar o povo que trouxe aqui a sobreviver, lutar e reconstruir suas vidas. Ensine-os meu filho, e em breve seu caminho se iluminará outra vez mostrando que é hora de partir. Se precisar me chame, mas mesmo assim esta água é esclarecedora, procure banhar-se nela ao amanhecer, entardecer e quando a lua estiver alta nos céus, assim como o fez seu amigo, te fará bem.
“Vitis aceitou, sabia que não adiantava discutir, era decisão suprema, sua vida e sua vontade foram entregues a muito já e não pretendia voltar atrás. Banhou-se, sentiu as forças voltarem e a energia das águas revigorá-lo aos poucos, depois deitou-se na beira da lagoa e ficou observando os cavalos pastarem. Eram lindos e sabiam se cuidar, aos poucos foi cochilando até adormecer.
“Teve um sonho estranho, Centaurium lutava com seres grotescos que nunca vira antes e depois de muitos derrubar tombava, com os que sobraram pulando por cima dele, em outro lampejo uma mulher com algumas crianças galopavam no garanhão branco bastante assustadas. Acordou sobressaltado e olhou em volta, estava no mesmo lugar, próximo de si estavam apenas os cavalos que o olhavam intrigados, sua égua se aproximou e lhe fez um afago com a cabeça. Vitis se levantou e correspondeu. Voltando à clareira ficou satisfeito com o que viu. Tudo estava organizado, o fogo aceso e o cheiro estava bom, madeira seca estocada em um canto protegido do sereno.
            “Bom, já que tenho que ficar aqui vamos viver os minutos intensamente e um de cada vez”, pensou consigo e em seguida gritou a todos:
            - Então, lembraram de trazer o vinho? Estou louco por uma caneca bem cheia.
            “Ao dizer isso sentiu a terra tremer aos seus pés, algo lhe dizia que não deveria ter dito aquilo naquele local sagrado. Esquecera totalmente disso. Todos olhavam para ele surpresos pois não sentiram nada, nem o menor tremor, Vitis olhou para cima e Bromus o observava sério, estava bravo com a atitude de Vitis.
            - Tá bom, tá bom, não está mais aqui quem falou, vamos tomar um chá ou suco e comer, estou faminto.”
            “E assim os dias se passaram sem que percebessem, Vitis treinava a todos, aprenderam como se defender, se esconder, enfim, lhes passou tudo o que ensinara a seu parceiro, também os orientava em relação à lagoa, os banhos que deveriam tomar e como se comportar naquele local.